Publicado na página do Le Monde Diplomatique Brasil
Enquanto a esquerda
brasileira busca novas agendas e programas, o tema da corrupção vem ganhando
protagonismo cada vez maior nos seus debates. Vejo essa tendência com
perplexidade e desalento, pois a considero um erro conceitual e estratégico
grave, que pode mesmo inviabilizar a sobrevivência do progressismo organizado
no país.
Chamo doravante de
Cruzada o amplo repertório subjetivo que acompanha a pauta anticorrupção nos
moldes atuais. O termo abarca tanto o viés místico da plataforma quanto seu
imaginário bélico, ambos tendo como principal símbolo a operação Lava Jato,
apesar de não restritos a ela. A qualificação busca espelhar também o uso
sectário do programa, o hábito de desqualificar seus críticos por suposto apoio
a alas “infiéis”.
Logo de saída notamos que
o espírito da Cruzada guarda uma contradição insanável: precisa ser inflexível
na propaganda, mas tolerante na aplicação. Levada a purismos extremos, ela
jamais daria conta das minúcias irregulares da vida social, das instituições
públicas e do setor corporativo. Por outro lado, admitindo sua inviabilidade
prática, perde o sentido isonômico e universalista que a justifica, ou parece
justificar.
Considerando que as
próprias infantarias cruzadas sucumbiriam ao rigorismo total, apela-se para uma
relativização seletiva. O alvo então se restringe à demonizada classe política,
mais especificamente ao “outro” malfeitor que não desfruta das simpatias
ocasionais dos fiscalizadores (partidárias, religiosas, performativas). E é
exatamente esse farisaísmo que termina por arruinar os bons propósitos da empreitada.
Como na obsoleta “guerra”contra as drogas, o falso “combate” da Cruzada se resume a um ciclo vicioso de
fracassos que geram novas medidas de exceção, cujas derrotas servem de pretexto
para mais arbítrio. Ora, não faltam leis. Mesmo às vezes desatualizada, a
legislação brasileira é suficiente. O verdadeiro problema da corrupção, a
impunidade, nasce nas instituições que mais defendem o aperto regulatório e os
extremos punitivos.
O único resultado
prático da radicalização legal é empoderar tais setores, essencialmente
antidemocráticos, eles próprios corrompidos, privilegiados e impunes. O esforço
para impedir que o decálogo saneador se estendesse ao Judiciário exibiu, mais
do que apego à blindagem corporativista, o reconhecimento das prerrogativas
arbitrárias em disputa.
A Cruzada é, portanto,
um construto ideológico. Uma âncora discursiva presa a memórias e práticas sociais incompatíveis com qualquer plataforma libertária. Sua negatividade
substancialista mobiliza intolerância, medo, castigo. O aplauso a polícias e
justiceiros togados embute uma potência desejosa de “vigiar e punir” (pobre
Foucault) que permeia as vias mais arcaicas de opressão. Elas precisam ser
extintas, não generalizadas.
Mas, convenhamos, os
sinais estavam claros já nas manifestações pelo impeachment, com seus grupelhos
fascistas, seus policiais-modelo, seus bonecos enforcados, suas apologias militares.
E continuam óbvios em grampos ilegais, vazamentos clandestinos, delações
manipuladas, denúncias vazias, humilhações de réus, vendetas escusas, todo um
rol de “excepcionalidades” inconstitucionais que chocavam os progressistas de
antanho.
Do ponto de vista
estratégico, a pauta da Cruzada não é ruim para a esquerda porque moralista,
embora algumas de suas vertentes talvez mereçam o adjetivo. É ruim porque
simplória, vetusta, agressiva, com cheiro de elite “cansada”. E porque jamais
conseguirá se desvencilhar do ódio pela democracia representativa, do
ressentimento contra o eleitor, da mesura à autoridade e do menosprezo por ritos e direitos.
Se existe um meio
libertário e inclusivo de abordar o imenso problema da corrupção sem
instrumentalizá-lo ideologicamente, o trajeto é inverso: valorizar a
representação política, a constitucionalidade, a isonomia judicial, a
transparência institucional ampla e irrestrita. Principalmente no Poder Judiciário,
que, repito, sempre foi a grande fonte da impunidade e agora finge ser vítima dos
seus beneficiários.
Pesquisas de opinião
monotemáticas ou realizadas no calor da polêmica servem para aferir o poder dos
cruzados midiáticos, não uma tendência que a sociedade teria se o debate
público fosse de fato amplo e informativo. Aliás, mesmo o aval majoritário da
população pode ser questionado. Ou será que a desculpa do acolhimento ao anseio
popular valeria também para a defesa da pena de morte? Para a criminalização do
aborto?
Adotar a Cruzada representa
um oportunismo contraditório com as críticas desferidas às alianças espúrias do
PT. E uma repetição do seu pragmatismo suicida: o fortalecimento de alas retrógradas
que não hesitariam em aplicar o legalismo tendencioso à esquerda adesista ou em
absorvê-la, gerando facções moderadas nas franjas de uma coligação conservadora
hegemônica. Todos apaziguados pela causa comum.
Algumas tropas já se
voluntariam para o sacrifício. São as seitas do esquerdismo antipetista mais
radical, atraídas pela Cruzada apenas porque o PT denuncia seus métodos. Incapazes
de superar a mal resolvida crise edipiana com Lula, aninham-se no colo maternal
da Justiça, esperando que ela os satisfaça através do sacrifício expiatório do
antigo líder. E brandindo a retórica policialesca na falta de outra que a
substitua.
É óbvio que esse lacerdismo
cor-de-rosa está restrito a uma verborrágica porém diminuta minoria, que não se
dá sequer ao trabalho de explicar suas contradições sem recorrer ao antipetismo
como selo autolegitimador. Observando o campo progressista para além das bolhas
digitais, vemos uma ampla constelação de valores, desejos e narrativas que
poderiam levar a pauta da corrupção a patamares menos inconsequentes.
As promessas redentoras
e paradisíacas da Cruzada parecem tentadoras porque a suposta falta de perspectivas
(também ela um subproduto da ideologia judicial) empurra a militância para os
confortos inerciais do discurso único. Basta que ele seja desarticulado, mostrando
a intolerância, a desigualdade e o autoritarismo da sua nudez obscurantista. Aí
a esquerda encontrará sua pauta, articulada não em torno da adesão, e sim da
resistência.
2 comentários:
Verborrágico é o senhor! O tema, o mérito quase desaparece diante da ditadura do estilo e da forma. Abuso de autoridade e corrupção são ambos graves. Não defendo nem um nem outro. O que eu depreendi é que corrupção, para você, não é grave. Grave apenas é ver uma grande ala de brasileiros comuns, não tão letrados como o senhor, buscarem mais uma vez esperança de serem representados por gente que compreende a responsabilidade do poder.
Israel, acho que é a sua indignação, e não o estilo do texto, que o leva a acreditar que menosprezo a gravidade da corrupção. Minha crítica se concentra no punitivismo arbitrário e na necessidade da esquerda se afastar dele, construindo um projeto inclusivo, transparente, libertário e, acima de tudo, isonômico para lidar com o problema. Não tenho pretensão de fornecer respostas viáveis para isso, mas sei que elas jamais passarão pela cultura do arbítrio. Naquilo que eu imagino ser um pensamento de "esquerda", pelo menos.
Abs
Guilherme
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